Abril Vermelho, de Santiago Roncagliolo
Por Sônia Chacaliaza
O
que será realmente vermelho?
Circunstância:
Garota peruana, por demais avoada, vestida com uma camiseta vermelha e que, enquanto
se locomove por São Paulo, vai lendo um livro de capa vermelha que,
ironicamente, intitula-se Abril vermelho.
Local:
Um dos vagões da linha azul do metrô.
Dia:
18 de março de 2016.
A
situação descrita acima não passaria de um episódio anedótico e até irrelevante
se não fosse pela data e pela simbologia que envolve a cor vermelha, tanto
dentro do livro como no contexto da sua leitura. Abril vermelho é um dos
livros da literatura peruana contemporânea que têm como ponto de partida o
conflito interno ocorrido no país nos anos 1980 e inícios dos 90s do século
passado, entre as forças militares e o grupo terrorista Sendero Luminoso.
Usando as palavras do autor, Santiago Roncagliolo, o livro é “um thiller,
ou seja, um romance policial sangrento, com assassinatos em série e crimes
monstruosos”. A trama do romance se desenvolve em Ayacucho nos meses de março e
abril do ano 2000. Os crimes são efetuados à maneira senderista, criando a
sensação de um ressurgimento do grupo subversivo. Esta sensação está encarnada
na personagem principal, o promotor distrital adjunto Felix Chacaltana Saldívar,
que tentará desvendar os crimes. As suas pesquisas, porém, só farão com que as
pessoas com as quais ele se relaciona morram cruelmente.
Além da
temática, da fluidez da escrita e dos elementos culturais usados na história,
existe um outro elemento – já assinalado – que foi determinante para falar
desse livro: a cor vermelha. No imaginário peruano, e no livro, a cor vermelha
junto ao símbolo da foice e do martelo remetem diretamente ao Sendero Luminoso,
ao terror dos anos de conflito, aos estragos e às sequelas que ainda se percebem
na sociedade peruana.
O trauma está vigente porque até agora as
feridas estão abertas e doem em todo o país, com maior intensidade nas
localidades que mais sofreram, como é o caso de Ayacucho. É por isso que lá, no
meu país, os partidos de esquerda ou de orientação socialista e que usam a cor
vermelha são chamados de terroristas ou ‘terrucos’ (como corriqueiramente se
fala). É pelas torturas sofridas, pelas matanças massivas, pelos carros-bomba,
pelos desaparecidos (que ainda são procurados) que no Peru a cor vermelha está
diretamente ligada ao terror. É por isso que o livro se intitula Abril
vermelho e é por isso que a capa tem de ser vermelha.
O
fato d' eu estar vestindo uma camiseta vermelha enquanto lia o livro no metrô
de São Paulo, no dia 18 de março de 2016, foi acidental. Aquele dia ia
acontecer a marcha contra o impeachment da presidenta Dilma. Eu, alheia
a tudo (e não necessariamente por falta de interesse), fui para São Paulo
receber minha mãe, que veio me visitar. Eram três horas de viagem de São Carlos
até o Terminal Tietê e quase uma hora mais até Guarulhos. Um dia antes
encontrei Abril vermelho na Biblioteca da UFSCar e decidi relê-lo depois
de dez anos, e em português. Então fui a São Paulo com o livro para me entreter
enquanto viajava. Não me lembrei da marcha e fui com a camiseta vermelha.
Quando peguei o metrô, percebi que várias pessoas me olhavam de uma maneira
esquisita, como se eu fizesse alguma coisa errada. Primeiro pensei que os olhares
eram porque lia um livro no metrô (quando o costume é ficar alienado no
celular), depois percebi que, além de olharem o livro, olhavam a minha
camiseta. Foi nesse momento que me lembrei da marcha. Ninguém me fez nada,
ninguém me falou nada, mas os olhares às vezes falam mais do que as palavras.
Foi esse fato, somado à simbologia da cor no imaginário peruano, que me fez
escrever sobre esse livro.
Depois
daquele evento fiquei pensando em como somos alheios ao que acontece e aos
significados que pode carregar um elemento ou uma cor em determinados contextos
político-sociais. Se colocássemos em uma balança o peso da cor vermelha e o que
representa nos contextos peruano e brasileiro, perceberíamos para onde ela se
inclinaria. Perceberíamos o que essa cor representa. No Peru, quando alguém é
de esquerda ou socialista, é imediatamente catalogado de ‘rojo’, é considerado
um ‘terruco’ e se manifesta explicitamente o ódio (e o temor) que ainda permeia
a nossa sociedade e que poderia estar justificado na violência e no trauma
sofridos. No Brasil, usar uma camiseta vermelha é estar a favor de Dilma, é ser
petista, é ser ‘vermelho’, é ser vítima de ameaças (ainda que não foi meu
caso), de olhares segregadores e de ódio. Eu me pergunto: há justificativa? A
resposta é não.
Às
vezes é bom observar o que as sociedades vizinhas padecem ou padeceram para
perceber que algumas das nossas atitudes não estão certas. O livro de
Rocagliolo mostrará ao leitor que a simbologia de uma cor pode ir além dos
domínios políticos e representar realmente algo ligado ao terror e à violência
que se sofre em determinados contextos. Fica por conta do
leitor ingressar nesse universo e tirar suas próprias conclusões.
RONCAGLIOLO,
Santiago. Abril vermelho. Trad. Joana Angélica d’Avila Melo. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2007.
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