A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch
“I saw guns and sharp swords in the hands of young
children”
–
Bob Dylan
Por Nicolas Ferreira Neves
A cena é nossa velha conhecida:
no chão a mala pesada apoiada à perna leva, além das roupas, a esperança do
retorno. O rapaz, que de vinte anos incompletos, se despede da mãe: é uma
despedida contida, emocionada mas sem exageros, menos dramática do que a
anterior quando esse mesmo rapaz se despediu daquela com quem, não fossem as
circunstâncias, se casaria meses depois. Altivo, portador de uma hombridade até
então ignorada, o rapaz deixa família e amigos e vai defender a pátria. Há
pouco se iniciara a guerra. Dali em diante encontraria mulher alguma oxalá,
para sorte dele, não fosse parar numa enfermaria montada às pressas em meio ao
campo de batalha, ou oxalá, para a sorte dela, não cruzasse o seu caminho com o
de alguma mulher das linhas inimigas.
Das beligerantes atividades não
participam mulheres exceto quando ocupam os já consagrados lugares da noiva
chorosa, da mãe resignada, da enfermeira dedicada ou da mulher inimiga. Não
participam ou de sua participação não restam indícios: um rastro, um
apontamento, um sinal de fumaça, uma trilha entre as trincheiras. Sistematicamente
apagou-se a presença feminina dos registros oficiais da guerra. E assim
continuaríamos, num débito histórico e humano ainda mais grave porque ignorado,
não fosse este A guerra não tem rosto de
mulher da bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, conhecida entre nós como a
vencedora do Nobel de Literatura de 2015.
Em seu livro, Svetlana retrata em
partes as conseqüências individuais da influência da já extinta União
Soviética, que formou uma geração de moças e rapazes nacionalistas que não
pensavam duas vezes antes de abrir mão de tudo e ir ao front. Com o tempo, com
o decorrer da guerra, e motivadas pela falta de contingente masculino nos
campos de batalha, soviéticas mal saídas da adolescência, algumas ainda aos
quinze anos, alistaram-se no exército e foram aos campos de batalha. Não apenas
como enfermeiras e cozinheiras, mas também como franco-atiradoras,
paraquedistas, mecânicas, fuzileiras, motoristas, e toda uma série de outras
ocupações que sempre foram associadas ao universo masculino.
Mais do que o relato histórico,
com seus heróis, descrição de batalhas e tudo aquilo que entrou para os
registros oficiais, o que interessa ao livro é o depoimento dessas dezenas de
mulheres que lutaram na Segunda Guerra Mundial e tiveram de romper com a ideia
de que ser mulher e ser soldado são coisas excludentes. Mulheres que, depois de
décadas, ganharam voz nesse relato polifônico construído com maestria por
Svetlana, e que foram totalmente desumanizadas durante e mesmo depois da
guerra: durante porque abriam mão da própria feminilidade e tinham que lidar
com os efeitos mesmo fisiológicos da guerra (muitas pararam de menstruar ou não
conseguiram mais ter filhos); depois porque passaram a ser estigmatizadas e
marginalizadas por uma sociedade que não aceitava o fato de que mulheres
puderam assumir posições até então exclusivamente masculinas. Mulheres que
tiveram a realidade masculina imposta a elas não apenas pela posição que
ocupavam, mas também por sua condição feminina: o estupro, enquanto arma de
guerra e elemento de subjugação e confirmação da posse do território inimigo,
aparece em inúmeros relatos recolhidos em A
guerra não tem rosto de mulher.
Ler livros como este em tempos
como os nossos, em que o conservadorismo e o radicalismo crescem
assustadoramente a cada dia, mostra-se atividade de extrema importância por
servir de alerta livre de exageros. Fica-se, ao fim da leitura, com a impressão
de que se a guerra não tem rosto de mulher, tampouco a tem (ou deveria ter) de homem.
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