Histórias Reais, de Sophie Calle

(Se) quest’è una donna




* Por Renan Augusto Ferreira Bolognin

     Pungente. Talvez seja este o melhor adjetivo para referir-se ao livro Histórias reais, da artista plástica e escritora Sophie Calle. Publicado em 2009 pela editora Agir no Brasil e traduzido por Hortencia Santos Lencaster, este livro pode ser visto como uma invasão singela à privacidade de uma mulher. Desde a infância ao casamento fracassado, os leitores adentram em uma obra que se assemelha a uma vida fragmentada cuja poeticidade pulsa em meio a uma estrutura limítrofe. Nesse caso, é justamente essa estrutura de ambivalência que nos leva ao ponto mais interessante do romance, que mediante a inserção de fotografias abala dicotomias. Entre elas, há o abalo das seguintes: i. autobiografia/autoficção; ii. romance e outros gêneros; iii. a mulher e o que ela não é/a mulher e quem nós leitores não somos. Pois bem, como confirmação destes abalos ingressamos no romance tomando em conta como parti pris o fato de ele construir-se efetivamente sobre os pilares da escrita de si. Curiosamente, essa escrita enovela-se à vida da própria autora Sophie Calle, bem como menções a seu nome próprio no romance e de suas iniciais na fotografia de um lençol dado a ela/à protagonista pela avó (p. 46). 

A pedra angular deste livro como gênero autobiográfico/autoficcional é, sem dúvidas, o uso de fotografias da artista Sophie Calle, responsável por ilustrar suas histórias reais. A esse respeito, cabe mencionar que a ficha catalográfica do livro o categoriza como “Fotografia artística”. Obviamente, este não parece um caso gratuito. Afinal de contas: por que a vida de uma (desta) mulher não pode ser um romance?

 Já a respeito do uso dessas fotografias, lembro-me do capítulo “Casamento de mentirinha” (p. 68-69). Neste, há uma foto de uma noiva e de um noivo, juntos de familiares e amigos em frente a uma igreja. A função da fotografia faz seu papel de representar o casamento da protagonista, no entanto, devido ao desconhecimento que muitos de nós temos do rosto da própria autora/protagonista francesa, ela é também responsável por esgarçar aquele real presente na fotografia. Neste caso, digamos que o romance está localizado em um ponto limítrofe de realidade e ficção. Portanto, a inserção e utilização das fotografias esgarçam a referencialidade do signo fotográfico com vistas a ficcionalizar (as) histórias que são “reais”.

Em torno do enredo deste “romance”, digamos que ele é formado por vidas entrelaçadas. Acompanhamos, então, a relação da protagonista com a mãe e o pai, a descoberta da sexualidade, suas noites como strip-teaser e o desabrochar e fenecer do amor preterido. Curiosamente, tenho o costume de realizar leituras quando caminho, devido à minha falta de paciência para esperar ônibus. Com esse método de leitura, pude perceber o percurso da vida particular da protagonista entrelaçando-se à minha caminhada. E é assim mesmo que a narrativa parece tender: a nos colocar em direção a caminhos poéticos de uma vida alheia que se expande a nossos olhos. É nisso que a pungência do livro nos fere: ler/ver a vida dessa mulher, sentir este percurso nos faz perguntar se isto, que se lê, é uma mulher? Será a estrutura deste romance construída de maneira tão rebuscada, com questões tão incompreensíveis para meu olhar sobre o eu que não sou/somos, que forma toda a mulher (mantenho a ambiguidade da personagem no singular e da totalidade no plural propositadamente)?

Pondo pequenos fragmentos à mesa, tais como um homem que desenhava a protagonista todos os dias e “[...] saía do ateliê, deixando pra trás aqueles pedaços de mim mesma” (p.21), este livro parece realizar o mesmo procedimento em nós: corta feito faca afiada e expõe nossos pedaços idiossincráticos em oposição aos dela. Assim, saímos da leitura deste livro conhecendo-nos um pouco mais (talvez) e pensando se somos todos formados de fragmentos de histórias reais balançadas à ficção. 

Referência:
CALLE, Sophie. Histórias reais. Trad. Hortencia Santos Lencastre. Rio de Janeiro: Agir, 2009. 
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* Agradeço a Linda Bellizzi Zeri pelo auxílio na confecção do sentido que pretendia dar a este título escrito em língua italiana. 

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