Sombras de Reis Barbudos, de José J. Veiga
Companhia,
o regime ditatorial de 1964
Por Júlia de Mello
“De repente os muros,
esses muros. Da noite para o dia eles brotaram assim retos, curvos, quebrados,
descendo, subindo, dividindo as ruas ao meio conforme o traçado, separando
amigos, tapando vistas, escurecendo, abafando”. Em Sombras de Reis Barbudos (1972,
Civilização Brasileira), é a
partir da metáfora do "muro" e de tantas outras figuras que José J.
Veiga descreve o golpe, o início do regime ditatorial da Companhia.
José J. Veiga, escritor, nascido em 1915, em Goiás, estreou
na literatura em 1959 com a obra Os Cavalinhos de Platiplanto. Tendo assistido ao golpe
militar de 1964 e vivido todo o período ditatorial, era inevitável que, em
algumas de suas obras, respingassem gotas do horror, da falta de limites, das
imposições, das arbitrariedades desse período.
Sombras de Reis Barbudos é um dos romances do autor em
que essa realidade transparece. Nele se constrói, de maneira arguta e perspicaz, uma alegoria do
governo militar. A narrativa é concebida por meio de um narrador em primeira
pessoa: Lucas, menino que conta a fundação da Companhia Melhoramentos, pelo Tio
Baltazar, em Taitara, cidade onde morava, e o modo como essa Companhia virou
centro de emanação de poder quando o tio sofre um golpe e é deposto de sua
presidência.
Daí em diante, a Companhia passa a não apenas dominar, mas também
fiscalizar e impor regras ao povo daquela cidade. Um dos fiscais da Companhia
passa a ser o pai de Lucas, que ambicionava poder e respeito pelo povo, mas que,
depois, começa a perder o gosto pelo poder e “respeito” conquistados com
ameaças e multas que aplicava.
É interessante observar que os acontecimentos narrados por
Lucas fazem sentido à primeira vista, mas o motivo pelo qual esses fatos
ocorrem é, somente, legitimado pelo regime ditatorial da Companhia, pela
fiscalização. Os eventos/episódios acabam sem um motivo concreto para terem
ocorrido.
Aos poucos a política ditatorial da Companhia vai se
revelando. Proibições e regras tais como “não rir em público”, “declarar tudo
que houver plantado em sua horta”, “não cuspir pra cima”, “obrigatoriedade de
registros dos Urubus na Companhia”, “impossibilidade de uso de lunetas e
binóculos para ver urubus no céu”, vão sendo obsessivamente editadas. Apesar de
tantos muros, de tantos limites, de tantas regras, as pessoas submetidas àquele
regime vão dando um jeito de sobreviver e de se distrair (porque era o que dava
pra fazer, já que não dava pra se rebelar: naquele tempo, rebeldia sem causa ou
com causa dava pena de desaparecimento ou recolhimento pela Companhia, por
tempo indeterminado).
À medida que aquele governo arbitrário vai se saturando e
decaindo, a narrativa de José J. Veiga vai delineando um tom, uma dicção que
acompanha a amenização do regime da Companhia. Até o pai de Lucas, que no auge
do poder da Companhia havia se tornado um fiscal arrogante e inescrupuloso, resolve
deixar a empresa e tornar-se dono de armazém. No entanto, o período em que foi
dono de armazém durou pouco, já que ele fora, imotivadamente,
processado e levado preso sem saber, nem ele nem o leitor, o porquê.
Enquanto o regime autoritário não acaba de vez, a sociedade
vai vivendo uma alucinação coletiva. Era a única maneira de se refugiar do
sistema. Até que ele acabasse de vez, havia somente a possibilidade de
acreditar em mágica...
“- E quando é que vamos parar de tomar esse
remédio? Quero dizer, quando é que aqueles lá em cima vão voltar? Ou não voltam
nunca mais?
- Voltam. Um dia voltam.
- Mas quando vai ser?
- Para a festa dos Reis Barbudos.
Esperei que Seu Chamun perguntasse que reis
eram esses, e que festa, mas ele não perguntou. Eu também não, porque estava só
escutando. (...) Não me interessei em tirar a limpo porque já estou cansado de
ver gente voando”.
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