A Espera da Volante (Do livro "Faca"), de Ronaldo Correia de Brito
O
sertão e o relógio de antes
Por Gabriel Capelossi Ferrone
e Renan A. F. Bolognin
Ao começar a leitura do
conto “A espera da volante”, pertencente ao livro Faca (2003), de Ronaldo Correia de Brito, o leitor pode notar a priori uma ambivalência narrativa
relacionada à personagem Irineia, portadora de uma duplicidade constituinte: sanidade
e loucura. Por esse motivo, ela não parece retratar fidedignamente à volante da
polícia que está próximo à casa de um Velho. Tampouco o narrador deste conto
parece crer nos relatos dessa personagem. Além da ambivalência intrínseca a essa
personagem, outra notória e que serve como engrenagem para colocar os
acontecimentos narrativos em marcha é a da mobilidade/imobilidade dos demais personagens.
À mobilidade, referimo-nos novamente à Irineia, assim como ao Chagas e ao Luis
Ferreira. Já à imobilidade temos em vista o personagem Velho e a hospitalidade
de sua casa, pois “[...] havia o mundo, onde cumpria sua sina de loucura e, num
canto deste mundo, a casa do Velho, repouso dos medos” (p. 16). Obviamente,
ambas se interconectam e é impossível dissociá-las, destituí-las. A casa
simboliza um refúgio para aqueles que foram vítimas do sertão, como Irineia que
“[...] aparecia sempre, escapada dos cães do estradas, da perseguição dos
homens que queriam deitar com ela, do ciúme das mulheres abandonadas pelos
maridos” (p. 16). Podemos também remontar ao crime cometido por Carlos de
Chagas e a seu refúgio na casa do Velho:
- Ele tinha praticado morte feia,
ajudado por outros dois. Pediram arrancho numa fazenda e, na calada da noite,
mataram seus donos e um filho rapaz. Tinham intenção de roubo, mas não encontraram
nada. Derramaram sangue em vão - falou Irineia e mexeu-se no canto onde estava”
(p. 14).
Justamente pelo crime
cometido, Chagas buscou refúgio no único lugar do sertão que manteve a tradição
hospitaleira, a casa do Velho: “A lei mais sagrada do sertão, a hospitalidade,
fora ferida por Chagas e seus dois comparsas. As portas das casas se fechavam.
Só o Velho continuava com as suas abertas” (p. 15). No caso de Luís Ferreira,
detemo-nos em mais um personagem que encontra acalento na casa do Velho e é responsável
por confirmar a história de Irineia a respeito da perseguição da volante
policial. Assim, torna-se patente a mobilidade da volante policial em direção
ao refúgio do Velho: “Todos os dias os viajantes relatavam as notícias das
andanças da volante, anunciando sua chegada. Luís Ferreira trouxera nova
história. Era homem de se acreditar. O Velho o conhecia de muito tê-lo
arranchado” (p. 17).
Avançamos, deste modo, a
uma consideração macroscópica a respeito do sertão mediando essa dicotomia de
mobilidade e imobilidade. A volante da polícia representa um sertão que
ultrapassou suas tradições, além de trazer no bojo de sua profissão a
violência. Curiosamente, este personagem está em constante mobilidade, embora
não consiga chegar à casa. Em outro aspecto, os personagens referidos
anteriormente visitam a casa do Velho como se acessassem um sertão
hospitaleiro, associado durante a narrativa a um sertão imutável ao longo da
história. Portanto: um espaço de manutenção das tradições
sertanejas/sertanistas.
Outra característica da
passagem temporal do conto - e responsável por colocar o movimento da narrativa
em contato ao espaço físico - é a utilização de fenômenos meteorológicos como
medidas cronológicas, tal como em “[...] lua minguante” (p. 14), “[...] a lua
cheia tardaria” (p. 16), “O verão cobria a terra de pelo. As noites quentes
demoravam a passar, parecendo mais longas que de costume [...] nos pastos as
vacas emprenhavam entre carreiras e mugidos. Cumpria-se o ciclo da estação (p.
17)” e “O tempo não se marcava pelo relógio de antes” (p. 21).
Além disso, há um caráter
interpessoal para o acesso a este espaço. Explicamos: a volante da polícia, por
exemplo, não acessa a casa do Velho porque não está fugindo da mobilidade. Sua
função na narrativa é fomentar a mobilidade seja por medo, seja por respeito. Inversamente,
o Velho está impregnado no imóvel e, ao mesmo tempo, no dito anteriormente
sertão imutável. Por sua vez, é neste espaço de recepção que os desamparados
pela mobilidade encontram conforto. A chegada da volante, ou a possibilidade
de, declara implicitamente uma possível mobilidade de um outro sertão, móvel, fagocitando
o sertão do Velho:
Quando os soldados
viessem [...] as árvores revelariam sinais. Com certeza, perderiam o brilho
verde de suas folhas. [...] como praga de seca, os homens passariam matando,
amofinando o que caísse debaixo da força maldita dos seus olhos. O tempo não se marcava pelo relógio de antes
como bichos escapados de uma broca queimada as pessoas passavam correndo, sem
se deter. Um medo guardado nas pedras era revolvido pelos gritos e pela pólvora
dos soldados (grifo nosso, p.21).
Digamos assim que o conto
de Ronaldo Correia de Brito entrelaça de maneira coaxial a mobilidade e a
imobilidade de maneira a descarrilar ambas nos trilhos e nas engrenagens do
sertão e balança sua construção ora para o movimento (da mobilidade, do
trânsito), ora para um contraste enriquecedor com outro mais tradicional
(imóvel, quase que imutável) e que, aos poucos, é tomado pelo movimento.
BRITO, Ronaldo Correia de. A espera da volante. In: ______. Faca. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 11-21.
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