Cartas de um sedutor, de Hilda Hilst

Hilda Hilst: pornografia pura ou projeto estético?
Por Manoelle G. Guerra
e Felipe C. Mello

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A primeira leitura proposta pelo ciclo de debates Contemporâneas: leituras de quarta foi Cartas de um sedutor, de Hilda Hilst. A experiência dos presentes foi, em um primeiro momento, de choque, uma vez que o texto selecionado existe sob uma roupagem pornográfica, provocando, pela mobilização de tabus, desconforto e aversão de parte considerável dos leitores.  A voz privilegiada para a representação do erotismo é a masculina, potencializando esse efeito e escancarando o erotismo observado no romance. Em contrapartida, o feminino é subjugado pelo embate dos sujeitos representados.
Em Cartas de um sedutor, há uma oposição entre as figuras do narrador Stamatius, um mendigo-escritor, e seu amigo de infância, Karl, por ele caracterizado, e ficcionalizado como o redator das cartas que compõem o título.  Karl, enquanto personagem, é um boêmio, boa vida que escreve para irmã suas angústias relacionadas com uma não correspondência sexual por parte dela. No decorrer das cartas somos lançados em uma conflituosa organização familiar composta por relações incestuosas. Ele alude, majoritariamente, à existência de uma possível ligação entre o pai e a filha, Cordélia, que não tem voz concedida em meio às cartas enviadas, colocando-nos, apenas, à mercê das construções devassas feitas por ele. Desse modo, é necessária uma contestação das provocações atribuídas a ela, bem como da veracidade das correspondências.
Na narrativa principal, o amigo de infância é representado como um suposto escritor bem-sucedido que, em comparação a Stamatius, conseguiu lugar no mercado editorial com publicações de boa vendagem, acompanhadas do amor das mulheres, algo que, segundo o próprio narrador, foi possível por atos ilícitos, não somente concretizados com os editores, mas também representados ficcionalmente em situações outras.

E não é que esse pulha cínico está lançando um livro? É capaz de tudo. De dar a rodela, de meter no aro de algum editor velhusco, chupar-lhe a pica até fazê-lo sangrar, sacripanta bicudo! queria porque seria ser escritor. Ponderava; Tiu, não tem essa não de ascese e abstração. Escritor não é santo, negão. O negócio é inventar escroteria, tesudices, xotas na mão, os caras querem ler um troço que os faça esquecer que são mortais e estrume. Continua: Tiu, com a tua mania de infinitude quem é que vai te ler? Aposto que serei o primeiro na vitrina e tu lá nos confins da livraria. (HILST, 2014, p. 198). 

Stamatius vive da coleta de lixo nas ruas, o que se constitui como uma contraposição em relação a Karl. Auto representa-se por suas relações sexuais e a sua vontade de redigir literatura a partir de um projeto estético próprio. No percurso da narrativa, o leitor é colocado, primeiramente, frente às cartas que ficcionalizam o antigo amigo de infância e, apenas posteriormente, à sua figura que compreende um entendimento maior do seu caráter enquanto indivíduo (“De outros ocos”) e o seu modo de composição literário (“Novos antropofágicos”). 
Em meio às ruas, é acompanhado por Eulália que, no início da narrativa, sugere que Stamatius escreva sobre a “realidade do Brasil”. Este recusa e transpõe para os seus escritos a realidade deles como casal, em uma perspectiva meramente sexual, como mostra o excerto abaixo, que funciona, na fala do narrador, como uma provocação à estética de seu opositor, ironizado nas cartas presentes no romance:

“escreve de mim, da minha vida antes deu te encontrar, da surra que o Zeca me deu, da doença quele me passou, da minha mãe que morreu de dó meu pai quando ele pôs o fígado inteirinho pra fora, do nenê queu perdi, do Brasil ué!
escrevo sim, Eulália, vou escrever da tua tabaca, do meu bastão. (HILST, 2014, p. 140).

Hilda metamorfoseia-se em Stamatius para manifestar a sua insatisfação com o mercado editorial que lhe concedeu apenas “bananas”, enquanto ela produzia seriamente seus textos. Os tons divinos e eróticos presentes em sua poética foram aclamados sem nunca serem lidos, e sua busca por reconhecimento verdadeiro resulta em uma hiperbolização de sua própria estética. A autora afirma, em uma entrevista concedida à TV Cultura no lançamento de O caderno rosa de Lori Lamby, que o desejo do autor é ser lido. A pornografia funciona, assim, como uma porta aberta para que os leitores possam acessar sua obra, agora profana, como um caminho para encontrar a santidade.
Essa primeira leitura proposta traz uma discussão que envolve o mercado editorial e a crítica como indicadores de leitura. O projeto Contemporâneas propõe justamente uma ação que vá de encontro a esse processo de exclusão de obras e autores, tendo em vista a necessidade de expandir os referenciais de leitura dos alunos e membros do corpo acadêmico. Essa é uma premissa que se faz necessária, não somente dentro da literatura brasileira contemporânea, mas também nas literaturas em outras línguas, e demanda um esforço por parte da própria academia, de forma a incentivar o conhecimento de novos autores e de um diálogo mais aberto sobre literatura.  

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