THE FREEWHEELIN', de Bob Dylan

Por Nicolas Neves


O ano era 1963: em agosto criou-se a chamada ‘linha quente’ que ligava os governos soviético e americano, buscando evitar conflitos como aqueles ocorridos um ano antes na chamada Crise dos Mísseis em Cuba. Nesse mesmo mês Luther King proferiria seu famoso discurso com a célebre frase “I have a dream”. Meses antes, em 26 de junho, o presidente Kennedy, que seria assassinado em novembro daquele mesmo ano, em visita a uma Alemanha dividida diria que a melhor frase para se expressar o orgulho àquela época seria “Ich bin Berliner”. A Guerra do Vietnã, que se iniciara em 1955 e se estenderia até 1975, se agravava após o assassinato do então presidente Ngo Dinh Diem, fazendo com que grande parte da população americana se colocasse contra a guerra, o que geraria o movimento da contracultura anos depois.

Diante deste panorama The Freewheelin Bob Dylan, lançado no fim de maio de 1963, pode não apenas ser visto como o retrato de uma época, mas como um libelo profético dos tempos que estavam por vir. Com uma série de canções de teor político, Bob Dylan não incorre no erro de deixar de lado o trabalho estético visando apenas a denúncia; é o que pode ser visto nas músicas em que Dylan reproduz todo o sentimento de tensão crescente característico daquela época (é o caso, por exemplo, de “Talkin’ World War III Blues”), e preconiza muito da revolta, que ganharia força anos depois, em músicas como “Masters of War”:

“Vocês, senhores da guerra,
que constroem todas as armas,
que constroem os aviões da morte,
que constroem as grandes bombas,
que se escondem atrás dos muros,
que se escondem atrás das mesas,
só quero que saibam
que eu vejo através de suas máscaras”.

Também há espaço para o protesto em músicas como a apocalíptica “A Hard Rain’s A-Gonna Fall”, melhor e mais poética do disco, e como a famosa e celebrada “Blowin’ in the Wind”. Na primeira delas, Dylan nos apresenta a uma realidade devastada e inóspita. Diz o poeta:

“Estive diante de uma dúzia de oceanos mortos,
Eu vi um recém-nascido rodeado por lobos selvagens,
Vi um galho negro com sangue que pingava,
Vi um quarto cheio de homens com martelos sangrando,
Vi armas e espadas afiadas nas mãos de crianças pequenas,
Ouvi uma pessoa morrer de fome e muitas pessoas rindo,
Ouvi a canção de um poeta que morreu na sarjeta,
Encontrei uma criança jovem ao lado de um potro morto,
Encontrei uma jovem mulher cujo corpo estava queimando
E é uma chuva forte a que vai cair”

Os versos acima, retirados de várias partes de “A Hard Rain’s A-Gonna Fall”, constroem o retrato de um futuro marcado pelos erros do presente. Os crimes de guerra (e tantos outros), desculpados em nome do bem-estar da Nação, também aparecem nas perguntas de “Blowin’ in the Wind”:

“Quantas vezes as balas de canhão devem voar
antes de serem banidas pra sempre?
Por quantos anos algumas pessoas devem existir
antes de poderem ser livres?
E quantas vezes um homem pode virar a cabeça
fingindo que não vê?
Quantas vezes um homem deve olhar pra cima
antes de conseguir ver o céu?
E quantos ouvidos um homem deve ter
pra conseguir ouvir as pessoas chorarem?
E quantas mortes serão necessárias até ele saber
que pessoas demais morreram?”.

Mas nem só de protestos e política é feito The Freewheelin Bob Dylan: também há aqui espaço para falar de amor em músicas como “Honey, Just Allow me one More Chance”, “Girl From the North Country” e “Corrina, Corrina”, esta última, uma das únicas em que não temos apenas Dylan com sua gaita e violão, leva ainda o acompanhamento de Dick Westood no piano, Howie Collins e Bruce Langhome nas guitarras, Leonard Gaskin no baixo e Herb Lovelle na bateria. Destaque ainda para “Bob Dylan’s Dream”, música em que, com extrema delicadeza, o poeta nos fala da amizade e da passagem do tempo.

Com este seu segundo disco, Bob Dylan firmou-se definitivamente como um dos grandes nomes da música norte-americana. Produzido por John Hammond, The Freewheelin, é um disco em que Dylan aposta em composições próprias (na grande maioria das vezes) e que demonstram um passo adiante quando comparado ao disco de 1962 (o homônimo Bob Dylan). Trata-se de uma obra que, para além das habilidades como cantor e músico, levou ao público o poeta Bob Dylan. Poeta que, anos depois, receberia merecidamente o Nobel de Literatura: e este disco nos bastaria para provar a validade do prêmio.

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