O Natimorto, de Lourenço Mutarelli


Um musical silenciosa pede uma resenha silenciosa



Por Arthur Dias de Souza

Como incentivar as pessoas a conhecerem uma história sem fazer ao mesmo tempo com que essa narrativa perca a graça? Começa-se devagar, aproximando aquele que se deparou com este texto aqui, que fala sobre a história a ser conhecida. A história resenhada poderia estar materializada em um livro, um filme, uma peça de teatro, uma história em quadrinhos ou em muitas outras formas artísticas. É preciso não entregar tudo de bandeja, logo de uma vez. A ideia é transformar o leitor em alguém sedento pelas ausências que a resenha não entrega. Este processo pode ser aprendido e temos inúmeros exemplos de como ele se tornou uma arte tão necessária quanto as próprias obras. Já gastei horas inteiras assistindo a trailers e lendo resenhas sem, de fato, ter dado início a nenhum contato mais íntimo com as histórias sobre as quais eu obtinha alguns flashes. O risco é fornecer para quem está tendo contato com a resenha um elemento que o faça ter a sensação de estar íntimo da história, a ponto da pessoa desistir de buscá-la por inteiro.

E fico me perguntando como eu poderia aproximar alguém de um romance parecido com uma peça teatral e, ao mesmo tempo, cheio de frases curtas que compõem poemas de carne e osso? E isso é mobilizado para contar a história de dois personagens, um agente caça talentos e uma cantora de ópera, que passam a maior parte da narrativa trancafiados no interior de um quarto de hotel, sem muito contato com o mundo exterior. A princípio, não há nenhum problema nisto, vocês podem dizer, com razão, pois há inúmeras obras intensas e cheias de sabor, construídas em espaços reduzidos, com poucos personagens, sem muitas descrições. Podemos pensar em Esperando Godot de Samuel Becket e Dois perdidos numa noite suja de Plínio Marcos, para dar poucos exemplos.

No entanto, para sustentar essa espécie de narrativa é preciso desenvolver uma capacidade de construir diálogos precisos, que entregam somente o engate para a próxima fala com quem se está conversando. Talvez o melhor seja pegar o livro de Lourenço Mutarelli neste exato momento, antes de continuar a leitura da resenha (vou te dar o link[1]) e ler os primeiros diálogos de O natimorto: um musical silencioso, livro sobre o qual estamos falando aqui. Esse link foi fornecido pela própria editora, como uma espécie de tira gosto a ser saboreado. Temos construído um sistema bem eficiente e sofisticado para fornecer essas pequenas amostras, o que mostra, provavelmente, o quanto isso tem de significativo no atual funcionamento das relações entre as produções artísticas e o público.

Estou problematizando isso não para que esta resenha pareça inteligente ou suficientemente irônica para motivar o leitor. Estou em contato com a obra de Lourenço Mutarelli, tentando estudá-la mais detidamente há quase quatro anos e o que me provoca é a maneira como a imagem e a palavra se relacionam nos trabalhos do autor. O modo como o processo editorial, de circulação e inscrição dos textos funciona é uma das balizas para entender essas relações. Isso vale tanto para os romances quanto para as histórias em quadrinhos e peças de teatro de Mutarelli. O desenhista dos quadrinhos se tornou conhecido por meio de seus traços marcantes, que deixam cicatrizes de angústia e satisfação com a própria pequenez existencial nos olhos daqueles que tem contato com seus trabalhos e não tem pressa de largá-los. Esses desenhos são inteiros, independentes, contam histórias que nenhuma palavra poderia delimitar, explicar ou resumir. No entanto, essa mesma plasticidade dos desenhos é construída de tal maneira que se permite entrelaçar com as histórias de Mutarelli, criador de seus próprios roteiros, e reconhecido pelo seu público como criador de narrativas intensas.

Em O natimorto, atrelado à toda boniteza gráfica da publicação deste livro da Companhia das Letras, está uma história enxuta, de 133 páginas, que te leva aos poucos a um universo imagético com o qual você, leitor, já está acostumado. O personagem principal, aquele agente caça talentos, é um conhecedor do baralho místico do tarô e tem uma teoria no mínimo instigante sobre as imagens de advertência dos maços de cigarro. E mesmo você sendo um cético da pesada que não sabe nada de misticismo, não pode negar as relações que vai descobrindo com os arquétipos do tarô, reconhecendo diversas tipologias que estão a sua volta.

Mesmo você sendo alguém que não fuma ou não se preocupa de modo tão imediato com a sua saúde enquanto fuma, você não pode negar que conhece aquelas imagens horrorosas que estampam os maços de cigarro. Aquelas imagens que inundam o nosso cotidiano brasileiro desde 2002 e utilizam a tática controversa das imagens horrorosas para a diminuição do consumo de tabaco. Ao começar a escrever seu primeiro romance, O cheiro do ralo, Mutarelli afirmou em entrevistas que gostaria de criar uma história que fosse imaginada apenas pela palavra. O fato é que nesse romance já é possível ter contato com uma narrativa que mobiliza de modo contundente as imagens. Entretanto, em O natimorto, segundo romance do autor, é realmente instigante e difícil de explicar o modo como Mutarelli movimenta um conjunto tão grande de imagens e, além disso, transforma aquele universo de imagens, que já fazia parte de nossos cotidianos, em novos sistemas de funcionamento, levando os leitores a fraturas e contatos inesperados com essas imagens. As palavras fazem o trabalho de dar as diretrizes e as imagens estão correndo em nossa cabeça, de uma maneira que eu ainda estou tentando entender, e continuarei até o fim de minha pesquisa. O que eu gostaria é que o leitor que tenha se interessado em conhecer essa história me ajude a pensar sobre o modo como a narrativa é construída e quais são os efeitos causados por esse trabalho com a imagem durante a leitura do romance.

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