Vasto Mundo, de Maria Valéria Rezende
"Vasto Mundo": o mundo maior de grande de Maria Valéria Rezende
Por Raul Almeida
“Eu os conheço a todos. Reconheço-os
pelas pisadas e por elas sei de seus humores, de seus sentimentos, de suas
urgências, preguiças, de seu contentamento ou aflição. Sei de sua grandeza e mesquinhez.
Leio seus passos quando apenas roçam minhas lajes em corridas alegres de pés
pequenos ou quando me oprimem com o peso de vidas inteiras. Foi seu tropel
incessante que me despertou do meu sono de pedra. Só eu os conheço a todos
porque só eu estou sempre neles como eles estão em mim. Eles me
criaram e agora eu os crio.”
(pg. 8)
Vasto Mundo
foi o primeiro livro de contos de Maria Valéria Rezende publicado em 2001.
Neste livro conhecemos a população de Farinhada, cidade fictícia situada no
nordeste brasileiro. O livro é composto por dezoito contos, em que as
personagens se entrelaçam e a cada novo conto, a leitura nos aproxima para a maior
completude da pacata cidade “que nem existe no mapa” e de seus habitantes.
O
que chama a atenção nesta coletânea de contos é o (novo) regionalismo
contemporâneo da autora. Se por muito tempo a figura da população sertaneja foi
predominante na produção literária brasileira, atualmente tem um espaço miúdo
em suas representações. Claro que o regionalismo ainda se faz presente e atual,
porém as transformações sociais oriundas do regime militar brasileiro de 1964
até 1985 criaram um novo mercado, uma nova demanda a partir da consolidação da
indústria cultural e outras temáticas
surgem na ficção brasileira contemporânea, sobretudo os assuntos urbanos.
Então
porquê tal regionalismo como corpo estranho na literatura brasileira? O teórico
Karl Erik Schollhamer (2009) à respeito da ficção brasileira contemporânea aponta
que a literatura de Milton Hatoum passa a impressão de “um certo regionalismo
sem exageros folclóricos e o interesse culturalista na diversidade brasileira
que, nas últimas décadas, substituiu a temática nacional.” E por essa pista no
aproximamos de Vasto Mundo, que logo
nos remete ao poema de Drummond, que, não muito longe, também ajuda a entender
a população de Farinhada, imergida em um vasto e pesado mundo.
Os contos de Maria Valéria Rezende são como um
microcosmo de um país, que ajuda a compreender a história brasileira em suas
marcas do coronelismo, autoritarismo, patriarcado, machismo, desejos reprimidos
(entre tantos outros assuntos) que são expostos ao longo do livro. Não se fala
somente sobre Farinhada ou sobre a população sertaneja. Fala sobretudo, sobre o
Brasil, esse lugar maior de grande, cujas
diversas regiões geográficas compartilham de parecidas cicatrizes (e feridas).
Construídos
com maestria na discrição simpática do povoado em sua linguagem, em seus costumes
e pelos seus sonhos utópicos que são amparados pelo realismo fantástico que
(também) aparece como forma de refúgio, de crença, de possibilidade. Não somente o misticismo aparece como lugar
possível, a voz feminina toma espaço da revolução de caráter socialista.
Impossível não esquecer da freira em “Aurora dos Prazeres” que se junta as
prostitutas da cidade para fazer acontecer uma greve contra as imposições
políticas e as explorações trabalhistas; já em “Boas Notícias” temos Zefinha,
uma das únicas alfabetizadas da cidade que resolve dar um significado diferente
para as tristes cartas que chegam para a população; e ainda “O dia em que Eulália
foi feliz”, conto em que pela primeira vez a cidade passa a ser ordenada a
partir da voz de uma mulher e também pela primeira vez se vê a possibilidade de
justiça.
Aqui
o regionalismo nos parece que vem como representação de um povo historicamente
violentado e reprimido, e que permanece na base de um país calcado pela
exploração e pela injustiça. Maria Valéria Rezende nos tira de qualquer lugar
comum ou de qualquer estereótipo – e nos joga para um vasto mundo de uma
complexa realidade por uma sensível e aguçada escrita.
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